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quinta-feira, 22 de março de 2012
O legado de Galileu para a ciência moderna Por Danilo Albergaria
No final do ano de 1609, Galileu Galilei apontou seu rudimentar
telescópio para o céu e enxergou o cosmos mais longe e com maior
nitidez do que qualquer outro ser humano havia, até então, imaginado.
As observações do famoso acadêmico pisano, comunicadas no ano seguinte
por seu livro Sidereus nuncius (Mensageiro das estrelas, em
tradução livre), causaram uma miríade de reações contraditórias, de
surpresa e encantamento a estranhamento e negação. Nos quatrocentos
anos seguintes, a ciência se institucionalizou como ferramenta poderosa
de conhecimento e intervenção sobre a natureza, a física seguiu a rota
dos pioneiros passos do início do século XVII e invadiu as explicações
de fenômenos celestes, e a própria atividade de observar os confins do
espaço expandiu nosso universo com seguidas revoluções técnicas que
culminaram nos atuais telescópios espaciais. Se procurarmos os
alicerces desses desenvolvimentos, encontraremos dentre eles os eventos
protagonizados por Galileu, suas observações e escritos, cujos
significados para a ciência ainda hoje geram controvérsias e debates no
meio acadêmico.
Filósofos e máquinas
Quando pensamos nas ciências naturais, hoje, a
imagem mais frequente do ambiente de trabalho dos homens e mulheres
que se dedicam à ciência invariavelmente inclui sofisticados
instrumentos, máquinas que incorporam os últimos avanços tecnológicos.
Há muito tempo, as imagens do cientista inseparável de seus
instrumentos se tornaram referências populares: o biólogo e o
microscópio, o astrônomo e o telescópio e, mais recentemente, o físico e
o colisor de partículas. Mas nem sempre foi assim. Foi apenas no
período que marca o início da era moderna (fins do século XV até início
do século XVII) que alguns homens envolvidos na produção de
conhecimento sobre a natureza passaram a incorporar em seus estudos os
novos instrumentos produzidos por artesãos, pessoas alheias às
universidades e voltadas para o conhecimento técnico. Para o
pesquisador Thomas Haddad, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da Universidade de São Paulo (USP), “a Europa do século XVI já havia
presenciado uma transformação considerável no valor socialmente
atribuído à técnica e a certas formas de trabalho manual e Galileu se
forma em uma cultura decididamente sensível às realizações dos
engenheiros, artistas, artesãos, construtores de instrumentos ”.
A chamada Idade Média estava em seus
estertores, e assim também se encontrava seu modelo de produção de
conhecimento. As universidades encontravam-se dominadas pelo pensamento
escolástico, avesso ao que hoje conhecemos como experimento e baseado
fundamentalmente em autoridades irrefutáveis: a Bíblia e os escritos de
Aristóteles. Um professor de medicina poderia passar a vida inteira
estudando e ensinando sem nunca fazer uma incisão ou uma autópsia,
ofícios considerados menores. O conhecimento da natureza era geralmente
uma nota de rodapé ao que Aristóteles havia sistematizado na Grécia
antiga. Aos poucos, contudo, foi-se constituindo uma nova visão em que a
natureza era um livro tão importante quanto as Escrituras, que
deveria ser lido por meio de observações atentas, e se necessário com a
utilização de instrumentos produzidos por técnicas mundanas.
Poucos eventos da história da ciência
simbolizam com tanta importância e mais decisivamente a convergência
entre ciência e técnica do que as observações astronômicas que Galileu
realizou e descreveu a partir de 1609. A história é popularmente
conhecida: o telescópio havia surgido na Holanda no ano anterior e o
próprio Galileu o aperfeiçoou para fazer suas observações. Segundo o
historiador da ciência Antonio Augusto Passos Videira, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), “entre muitos dos seus
contemporâneos, Galileu tinha em sua casa uma oficina para a produção
de instrumentos militares e científicos”. Nessa oficina, ele teria
cortado e polido lentes “muito melhores do que aquelas que constituíam
os telescópios que se vendiam pela Europa”, afirma Júlio Vasconcelos,
professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História
das Ciências da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Familiarizado com novidades técnicas, Galileu apontou seu aprimorado
telescópio para o céu. O que viu através daquelas lentes acabaria tento
impactos profundos em toda a ciência.
O alto grau de novidade das observações de
Galileu foi veiculado, em 1610, em sua obra Sidereus nuncius .
Suas constatações significaram um ataque frontal à claudicante
cosmologia aristotélica, até então ainda vigente. No cosmos
aristotélico, os céus são o lugar da perfeição. Logo, a Lua deveria ser
uma esfera perfeita. Galileu observou que, pelo contrário, a Lua tinha
um relevo bastante acidentado, com montanhas e vales. Algumas das
chamadas nebulosas, aproximadas pelo telescópio, apareceram pela
primeira vez como aglomerados de estrelas. O astrônomo pisano afirmou
que, ao telescópio, eram detectáveis dez vezes mais estrelas do que a
olho nu. A própria Via Láctea era, ao contrário do que se pensava, um
enxame de estrelas. Galileu descobriu ainda que Júpiter tinha quatro
luas ele próprio, o que constitui uma primeira evidência real de que
nem todos os astros giravam exclusivamente ao redor da Terra.
Alicerces da ciência moderna
Além de ter fornecido um exemplo vívido de que
o estudo da natureza só teria a ganhar com as contribuições das novas
técnicas, Galileu é considerado um dos pilares da astronomia e da
física modernas. Mais controversa, no entanto, é sua contribuição para a
ciência moderna como um todo.
Primeiro é preciso dizer que não há uma
preocupação, por parte de Galileu, em sistematizar um método científico
abstrato, que se assemelharia a um trabalho de epistemologia: “Galileu
nunca se interessou por escrever um tratado sobre o método
científico”, lembra Videira. Mas há interpretações favoráveis à ideia
de que ele forneceu um paradigma para a futura pesquisa científica,
alicerçando-a nos princípios da experimentação, reprodutibilidade dos
resultados, e atenção aos padrões naturais com tendências
universalistas. Essa é a opinião do filósofo da ciência Pablo Ruben
Mariconda, pesquisador da Universidade de São Paulo, para quem a
ciência moderna ainda opera, fundamentalmente, sob um paradigma
galileano: “não vejo dissensões significativas dessa formulação geral
do paradigma galileano. Mais ainda, esse não se limita à física ou à
astronomia, mas está presente em todas as ciências naturais,
principalmente, hoje em dia, na biologia”, afirma Mariconda. A mesma
opinião é compartilhada por Júlio Vasconcelos, que percebe “uma
continuidade entre o que fazia Galileu e o que faz hoje cada um dos
cientistas contemporâneos, apesar dos progressos e das reviravoltas das
ciências nesses quatrocentos anos”. Thomas Haddad, por sua vez, prefere
não estender um modelo galileano para todas as ciências naturais:
“parece-me realmente importante que nos limitemos à astronomia e à
física, pois a influência de Galileu (e mesmo de Newton) sobre o curso
da história natural – as ‘ciências da vida e da Terra' – e da química é
muito menos claro”.
Há consenso quando o assunto é a
universalização com base na matemática, cujo melhor exemplo são as leis
universais da física. Galileu – assim como seu contemporâneo
Johannes Kepler – pode ser visto como uma ruptura na tradicional
separação entre física e astronomia. Na cosmologia aristotélica, o
movimento aparente dos astros nada tem a ver com o movimento das coisas
na Terra. Fazem parte de uma outra física – são até feitos de outra
substância – a qual não podemos ter acesso. Os trabalhos de Galileu e
Kepler, por sua vez, remam da direção contrária: matematizam movimentos
de objetos na Terra (Galileu) e dos planetas (Kepler), vinculam
fenômenos terrestres (como a maré) a causas astronômicas e abrem
caminho para a unificação total entre física e astronomia que aparecerá
com a lei da gravitação universal de Newton.
A revolução copernicana
Outra questão que marca o papel desempenhado
por Galileu na história da ciência é a sua rejeição do geocentrismo e a
defesa do modelo proposto por Nicolau Copérnico no século XVI.
Assim como Kepler, personagem de estatura
semelhante na história da revolução copernicana, Galileu estava
convencido de que o sistema heliocêntrico (ou seja, em que o Sol está
no centro do universo e a Terra é um planeta girando ao seu redor) de
Copérnico, publicado em 1543, estava correto.
A persistência de Galileu em defender o modelo
copernicano, anos mais tarde, vai desembocar numa das mais célebres
polêmicas entre religião e ciência. Condenado pela Igreja Católica à
prisão domiciliar perpétua e obrigado a recusar publicamente a ideia de
que a Terra gira em torno do Sol, Galileu se transformou – segundo uma
visão retrospectiva e triunfalista da história – num mártir da
ciência. Essa imagem altamente idealizada acabou por embotar a
realidade histórica, construindo uma noção de que a Igreja rejeitou em
bloco e a priori o copernicanismo ou mesmo as surpreendentes
observações telescópicas de Galileu. Haddad lembra que “a tradicional
narrativa de um Galileu isolado, tentando convencer, sobretudo, uma
Igreja Católica desconfiada, a aceitar a mera possibilidade de uso do
instrumento, é simplesmente insustentável, como atesta a recepção
entusiasmada que teve em Roma em 1610, bem como a quase imediata
incorporação do telescópio à prática astronômica dos jesuítas”.
Jesuítas que, ao contrário das narrativas “preto-e-branco” sobre a
polêmica, foram importantes interlocutores de Galileu, ainda que
posicionados no lado oposto do debate.
O episódio da defesa de Galileu da teoria de
Copérnico e sua posterior condenação pela Inquisição “representa
emblematicamente a separação que se estabelecerá na modernidade entre
ciência e religião, razão e fé”, afirma Mariconda. Segundo o filósofo
da USP, “Galileu viu com clareza que o método científico servia para
delimitar o território da ciência como independente, autônomo, com
relação a outras esferas como a teologia, a religião e a política”. A
partir de Galileu, portanto, a ciência passa a se constituir como uma
forma distinta de conhecimento, operando segundo mecanismos próprios.
Grandes transformações?
Embora haja controvérsias, é voz corrente a
constatação de que há uma crise nos modelos cosmológicos atuais (leia reportagem
sobre os desafios da astronomia). Não é de todo descabido comparar a
aparição de concepções enigmáticas como a da energia escura, de cordas e
supercordas, à incorporação de artifícios cada vez mais complexos para
sustentar o cosmos aristotélico, que levou mentes como a de Galileu e
de Kepler a serem seduzidas pela simplicidade do modelo de Copérnico e
romperem com a tradição dominante. Nesse contexto, faz sentido
perguntar se precisamos de “novos Galileus”?
Para Antonio Videira, a resposta é positiva.
“Novos Einsteins e Galileus são absolutamente necessários, pois a
ciência precisa de criadores, de pessoas que nos mostram como sair dos
impasses vividos ou como trilhar novos caminhos”. Já Thomas Haddad
encampa visão oposta: “de um ponto de vista epistemológico, não podemos
considerar que ‘novos Galileus' ou ‘novos Einsteins' sequer façam
sentido, pois não são eles necessariamente os motores das
transformações na ciência”. É razoável lembrar que trata-se de
contextos históricos completamente diferentes: “a situação atual da
ciência é bem mais complexa do que na época de Galileu e mesmo de
Einstein”, enfatiza Mariconda.
No entanto, sem procurar entrar no vespeiro da
dicotomia entre contribuições individuais e condicionantes históricas,
cabe afirmar que as contribuições de Galileu à ciência continuam
fundamentais para entendermos o caminho que a ciência percorreu nesses
quatrocentos anos. E, como sintetiza Vasconcelos, “a tradição não se
equivoca quando reverencia, há muito, a figura de Galileu como a de um
dos principais fundadores de um secular empreendimento que deveria ser
motivo de orgulho não só para os cientistas, mas para todos os homens e
mulheres”.
http://www.oei.es/divulgacioncientifica/reportajes027.htm
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